Transcuradoria_Alice Granada@artes.alheias
O discurso da sociedade sobre si mesma – como pensamos sobre nós e toda essa bagunça que temos montado para lidar um com os outros – está cada vez mais centrada na ideia de digitalidade. Embora tenham ficado para trás os dias de tecno-otimismo à la John Perry Barlow a respeito da autonomia do reino digital, parece que aprendemos, coletivamente, bem pouco desde então.
QNO
J V C T V - da série 'EPURE 3D', 2021
Tinta acrílica, lã acrílica e TV de tubo
Embora o mundo-como-o-conhecíamos esteja visivelmente desmoronando – política, econômica, epidemiológica, se não também esteticamente – nós alegremente nos entregamos a tecnotopias futuristas, na esperança de que uma ou duas novas ficções possam tornar o mundo um lugar melhor – ou ao menos nos distrair em meio ao crescente caos.
John Bumstead
BSOTD044, da série 'Broken Screen of the Day'
Fotografia de tela LCD danificada
Alguns dos maiores conglomerados de capital ao redor do mundo parecem decididos a nos convencer de que o cyberespaço (nos últimos tempos, o ‘metaverso’) é de fato o novo lar da mente humana. Quantidades astronômicas de dinheiro (e eletricidade) são gastas diariamente para fazer registros em livros contábeis digitais descentralizados, e não em qualquer coisa parecida com uma produção “material”.
Em face de todas as propagandas patrocinadas e material promocional vendendo terrenos dentro de computadores, é fácil esquecer: as pessoas ainda têm fome, e alguém ainda tem que fazer o almoço. Você não pode defumar costela de porco no metaverso (embora, para a surpresa de ninguém, mulheres ainda possam ser assediadas lá). Você (provavelmente) não poderá deleitar-se com seu amor NFT. Se servidores o suficiente caírem (ou fornecedores não forem pagos), seu macaco entediado pode virar um entediante erro 404, mas as telas a óleo de uma galeria devem conseguir resistir a ataques DDoS.
Apolinário
a robot chef cooking a meal by James Gurney
Image generated by Text-to-image-AI
Guerras cibernéticas são silenciosamente travadas a todo momento, mas apenas o bastante físico bombardeio de civis conseguiu agarrar a atenção do mundo. Trabalhar de casa durante a quarentena pode ter salvado empresas, mas destruiu nossa saúde mental ao nos privar do (verdadeiramente não-fungível) contato humano pelo que nos pareceram décadas. A linha pode subir ou descer, mas a matéria ainda importa.
QNO
Peugeot 106 twisted - da série 'EPURE 3D', 2021
Poliestireno, resina de poliéster fibrosa, tinta acrílica, lã acrílica
A matéria também importa na presença de habilidade, escolha ou intuição humanas na criação artística, um ponto tornado explícito de diversas formas pelos artistas convidados para é um mundo digital, mas alguém ainda tem que fazer o almoço, nossa transcuradoria dentro (ou amigável invasão) da Metatopia. Tecidos, pinturas a óleo, esculturas e outras mídias tradicionais, nas mãos de Gabriel Pessoto, Bryant Girsch e QNO, ajudam a evidenciar a verdadeira estética da representação digital, sublinhando quanto trabalho nossa percepção deve realizar para que vejamos não pixels ou polígonos, mas representações de humanos e ambientes.
Gabriel Pessoto
conteúdo delicado, 2020
Crayon and coloured pencil on paper
100x70cm
De forma similar, a malha poligonal visível nos curtas animados 3d de Nikita Diakur, baseados em elementos randômicos e algoritmos genéticos (meticulosamente programados por uma pessoa), não nos deixa esquecer, com humor, quanto trabalho humano ainda está por trás em fazer com que os movimentos físicos mais simples sejam viáveis em um modelo digital do espaço.
O peso do labor humano na construção do digital é duplamente frisado ao olharmos mais de perto para a exploração estética de intervenções sobre hardware: os engenheiros responsáveis por telas LCD dificilmente poderiam antecipar as potencialidades vibrantes permitidas por telas de computador quebradas, transformadas em arte por John Bumstead, agindo ao mesmo tempo como artista e curador de efeitos glitch. Tampouco – creio eu – os programadores por trás do hardware de videogames antigos (ocupados tentando preencher a tela com o máximo de polígonos tecnicamente possível) pararam para pensar em como circuit benders como Emotion.Engine_ poderiam soldar os circuitos do PS2 para atingir resultados fascinantes.
Emotion.Engine_
Still de video-demo de uma cópia de 'Caution, Seaman' rodando em um PS2 circuit-bent
O mesmo papel curatorial é crucial no trabalho de videomakers como Deksonato e Denis Volnov, que mostram que o video moshing, como qualquer outra técnica, é em última instância dependente de decisões criativas tomadas pelo artista – sobre quais referências usar, ou em qual momento intervir. Como uma forma de comunicação, e não apenas decoração, a arte ainda requer um falante consciente.
Mesmo na era de máquinas bem educadas que podem sonhar mundos que nós nunca imaginamos, as mentes encarnadas de artistas/programadores como Vadim Epstein e Apolinário ainda são fundamentais para selecionar quais matrizes pixeladas matematicamente coerentes agradarão nossos olhos e palato. Humanos ainda são indispensáveis na criação – ou destruição – de tudo que é mais essencial para humanos. O almoço está pronto.
Alice Granada, 2022
Vadim Epstein
Sem título
Vídeo gerado por IA baseada em GAN (0'54")